segunda-feira, 23 de junho de 2008

Quando ter lido Galeano me foi útil

Lá pelas tantas do curso Bíblico sobre o Antigo Testamento (os PC´s chamam de Primeiro Testamento!), o Professor de Teologia discorria sobre o Êxodo, da importância para o início da formação do Povo de Deus, das dificuldades e em como o povo tinha esperança, etc, etc, aí ele solta a pérola galeanesca:

Janela sobre a Utopia
Ela está no horizonte. Aproximo-me dois passos. Caminho dez passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte fica dez passos mais longe. Por muito que eu caminhe, nunca a alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isto: para caminhar.
(Eduardo Galeano)

Se eu estava com déficit de atenção naquele momento, a frase foi um chacoalhão, um “hã?” mental. E logo pensei que sobre a esperança, há alguém muito mais interessante e confiável para citar - o Papa - para aquela cambada de Católicos. Para quem compreende pouca coisa de Bíblia como eu, ainda mais do Antigo Testamento, a citação deste conhecido escritor-militante me soou esquisitíssima, a frase ficou destoada, deslocada mesmo. É praticamente impossível que o professor não soubesse quem estava citando e o sentido das suas palavras. Enfiei o sapo pela goela e tratei de prestar mais atenção à aula que estava sim interessante e cujo momento galeânico foi de passagem e eu não queria ser tão... chata.

Foi de passagem, mas pelo jeito, daquelas coisas que marcam!, embora houvesse outras partes da aula que pudessem ser mais marcantes (que ironia Moisés perdeu pra um latino...). Abro meu email e uma mensagem recomendava uma “reflexão” da citação, informada na sua versão original: e no lugar de esperança o correto é utopia. Muito bem. O sentido do pensamento de Galeano na “leitura” de utopia como esperança, não faz muita relação com o Cristianismo, ou melhor, não faz nenhuma, porque Jesus Cristo (a nova aliança) não é uma utopia terrena, mas a Verdade que nos faz ter esta esperança alegre de não desistir da aliança e do caminho para a vida eterna.

Sobre a esperança, o Papa Bento XVI escreveu uma Encíclica específica: Spe Salvi - Sobre a Esperança Cristã - que no início do documento diz:

1. « SPE SALVI facti sumus » – é na esperança que fomos salvos: diz São Paulo aos Romanos e a nós também (Rm 8,24). A « redenção », a salvação, segundo a fé cristã, não é um simples dado de facto. A redenção é-nos oferecida no sentido que nos foi dada a esperança, uma esperança fidedigna, graças à qual podemos enfrentar o nosso tempo presente: o presente, ainda que custoso, pode ser vivido e aceite, se levar a uma meta e se pudermos estar seguros desta meta, se esta meta for tão grande que justifique a canseira do caminho.
(...)
hoje particularmente sentidas, devemos escutar com um pouco mais de atenção o testemunho da Bíblia sobre a esperança. Esta é, de facto, uma palavra central da fé bíblica, a ponto de, em várias passagens, ser possível intercambiar os termos « fé » e « esperança ».

E mais à frente:
É importante saber: eu posso sempre continuar a esperar, ainda que pela minha vida ou pelo momento histórico que estou a viver aparentemente não tenha mais qualquer motivo para esperar. Só a grande esperança-certeza de que, não obstante todos os fracassos, a minha vida pessoal e a história no seu conjunto estão conservadas no poder indestrutível do Amor e, graças a isso e por isso, possuem sentido e importância, só uma tal esperança pode, naquele caso, dar ainda a coragem de agir e de continuar.

A citação sozinha de Galeano pode ser "tocante", mas pelo conjunto da obra e da vida do conhecido escritor uruguaio, não é coerente, ou melhor (já que coerência sozinha não quer dizer muita coisa) - não se "encaixa” em essência no pensamento e modo de vida Cristão Católico. Neste caso, as palavras do Papa cumprem o papel de estímulo e orientação a permanecer na fé e não desistir do caminho de Cristo.
Ainda: não é uma questão meramente de gosto: eu não gosto do Galeano, gosto mais do Papa! Ah já eu gosto do Galeano e do Papa! Para mim tanto faz! É verdade que, estou no primeiro caso, mas se fosse assim, a reflexão terminaria por aí, como se nos contentássemos (ou tivéssemos que nos contentar) com um “porque sim” ou “porque não”, em nome da gentileza e da paz entre os homens... Já fui leitora de Galeano, de veias-abertas e tudo, se tivesse continuado na estrada da utopia, seria mais um que anda, anda, anda e nunca chega a lugar nenhum, ou se chega a qualquer lugar, mas teria (ô consolo!) galeanos andando na frente, sempre caminhando-e-cantando-e-seguindo-a-canção num êxodo triste que sempre recomeça sem mesmo terminar.
Talvez esteja dando muita pelota pra uma titica de nada que durou alguns segundos da aula, mas é de titica em titica que se fazem estragos e confusões na fé dos outros. E também porque eu sou chata.

6 comentários:

Marco Aurélio Antunes disse...

Curiosamente, tal citação de Galeano também foi apresentada a mim, mas numa aula de Sociologia de um curso de História, o que, é claro, não me surpreendeu. Já no curso ao qual você se refere, a citação é mesmo estranha, a não ser que seus professores sejam o Boff e o Betto...

Filipe de Santa Maria disse...

Engraçado como uma frase como esta, que pode até soar bem, trás um significado diferente do que aparenta. Tenta justificar a busca pelo que não vai acontecer. Talvez o oposto do que seu professor queria dizer.

Marie Tourvel disse...

Adorei seu blogue. Bonito e vistoso. Virei sempre por aqui. Um beijo, Marie

Lelê Carabina disse...

Bah Marco Aurélio lives! rsrs bem, eu sou tão desconfiada com tais coisas que às vezes tenho que tomar cuidado para não ver boff debaixo da cama rsrsrs, mas acho que foi uma frase meio infeliz mesmo (viu Philippe), por isso que na hora deixei pra lá... Marie, obrigada pela visita! =) (agora fiquei mais preocupada com as visitas, eu que andava um tanto afastada da vida blogueira! I will come back!)

Roger disse...

Hmmm... esse blog vai para o meu Reader, na seção "Bonitas e Inteligentes", ao lado da Marie.

Marie Tourvel disse...

O Roger sempre educado e gentil. O blogue dele é ótimo, viu, Lelê? Beijos